A publicação, por parte da Wikimedia Foundation, Inc. (Requerida), de uma biografia em linha em páginas de Wikipédia, motivou a instauração de uma providência cautelar na sequência de o Requerente (AB) ter considerado um determinado tratamento de dados pessoais violador do seu bom nome, honra e imagem e causador de graves danos patrimoniais.
No seguimento deste processo, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) considerou então necessário decidir acerca da aplicabilidade do Regulamento Geral de Proteção de Dados e Lei nº 58/2019 ao caso concreto e, em caso da sua inaplicabilidade, aferir se ocorreu uma ofensa dos direitos de personalidade do requerente e ponderar acerca da prevalência do direito à honra do mesmo sobre a liberdade de expressão e de informação. Sem prejuízo das conclusões retiradas relativamente a estes temas, neste escrito focamo-nos apenas na primeira parte da querela.
Assim, relativamente à aplicabilidade do RGPD, o TRL começa por analisar a definição de dados pessoais constante do artigo 4º nº1 do Regulamento para, através da mesma, concluir que determinados dados atinentes à biografia publicitada na Wikipédia correspondem, sem margem de discussão, a dados pessoais do Requerente, encontrando-se por esta via preenchido o âmbito material do Regulamento (artigo 2º RGPD). De seguida, debruçando-se sobre o âmbito territorial do mesmo (artigo 3º RGPD), o TRL constata que o nº1 da norma rege as situações em que o Responsável pelo Tratamento dos dados ou um Subcontratante têm estabelecimento no território da União Europeia, enquanto o nº 2 se reporta aos casos em que ocorre um tratamento de dados pessoais, mas o Responsável pelo Tratamento ou Subcontratante não têm estabelecimento na União Europeia. Nesta senda, o acórdão, tendo por base o considerando 23 do Regulamento, fez-se valer de A. Barreto Menezes Coordeiro para determinar o conceito de “estabelecimento”, considerando que o mesmo é composto por três elementos que devem ser analisados casuisticamente: “(i) estabilidade da instalação; (ii) efetividade do exercício de uma atividade; e (iii) no contexto do exercício dessa atividade”. Após o reconhecimento deste conceito, o próximo passo centrou-se na realização de uma análise casuística de cada uma das situações previstas pelo artigo 3º do Regulamento, no sentido de perceber se o tratamento de dados do Requerente integrava em alguma. Desta feita:
“a) A oferta de bens ou serviços a esses titulares de dados na União, independentemente da exigência de os titulares dos dados procederem a um pagamento;
b) O controlo do seu comportamento, desde que esse comportamento tenha lugar na União.”
No que à alínea a) diz respeito, por forma a melhor entender os conceitos, o acórdão fez, uma vez mais, uso da doutrina já publicada acerca desta temática. Assim, atento a Barreto Menezes Cordeiro – que entende que “a menção a bens deve considerar-se como reportada a coisas corpóreas e a coisas incorpóreas, devendo por serviços considerar-se uma prestação” – e a Alexandre Sousa Pinheiro – que complementa referindo que “a simples disponibilidade de bens ou serviços em sítio web do responsável pelo tratamento ou subcontratante é insuficiente para preencher esta alínea” – , o TRL decidiu que os termos em que a Requerida facultava no seu site a biografia do requerente não preenchem os requisitos suscetíveis de acionar a alínea a), na medida em que a disponibilização da informação biográfica não consubstancia uma oferta de bens ou serviços na lógica da alínea, inexistindo a possibilidade de encomendar bens ou serviços à requerida com base em tal biografia online.
Para além disso, o TRL entendeu ainda que os factos adquiridos não permitem igualmente o acionamento da alínea b), do nº 2, do artigo 3º do Regulamento, uma vez que esta abrange as cookies, os social mediaplugins, os serviços de localização e todos os meios tecnológicos que permitam seguir a atuação dos utilizadores, não se encontrando manifestamente qualquer afinidade com os factos provados nos autos.
Em suma, o TRL concluiu que os factos apurados não integram nenhuma das situações previstas no artigo 3º do Regulamento (âmbito de aplicação territorial), não sendo o RGPD e a Lei nº58/2019 aplicáveis ao tratamento de dados pessoais demonstrado nos autos.
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